terça-feira, 6 de outubro de 2009

O Cachorro Estuprador



Nunca escrevi sobre ele e poucas foram as suas fotos. Hoje, pelo contrário, sinto-me obrigado a homenageá-lo. Lembro-me da primeira noite que passou em casa. Era um dia 14 de maio, dia de meu aniversário. Ele era pequenininho e tinha as orelhas caídas, custou, se não me falta a memória, uns cento e cinqüenta reais. Deixamo-nos para dormir na lavanderia. Naquela noite ele chorou muito e eu, com dó, fui dormir ao seu lado no chão, perto das roupas a serem lavadas.

Eu gostava da orelhinha caída dele. Recordo-me que perguntei à veterinária se ela iria se levantar ou não. Ele cresceu e ficou com uma orelhinha pontiaguda e fina, feito um morceginho, mas mesmo assim eu gostava dele. É verdade que poucas vezes o levei para passear, e me sinto arrependido por isso, mas eu sentia vergonha dele, pois que, apesar de pequenino, já gostava de se masturbar com qualquer outro cão, macho ou fêmea, que passasse em sua frente.

No início ele passava os dias em um quintal de proporções consideráveis localizado no andar superior de minha casa, mas depois, quando este quintal foi transformado em suíte pelos meus pais, passou a morar em um corredor um tanto quanto pequeno onde a empregada gostava de colocar as roupas para secar.

Sinto pena quando penso que passei pouco tempo com ele, que fui pouco atencioso, incompreensivo. Talvez pudesse ter sido mais seu amigo. Algumas vezes, por preguiça, deixei de dar comida ou água para ele, mas o que mais me comove é que, apesar de minha falta, ele sempre saiu como um louco em direção à cozinha para procurar algo de diferente para comer. Nunca lhe faltou motivação.

Seu maior prazer, penso, era viajar comigo para a chácara, onde passava horas seguidas se masturbando na frente da cachorra Branca, que nunca deu bola para ele. Surgiu desta atitude o seu apelido, Ralf - o cachorro estuprador. Quantas foram as vezes que eu e minha mãe procuramos por ele como loucos. Certa vez, quando ainda era bem pequenininho, perdeu-se de mim e meus irmãos enquanto andávamos de bicicleta por trilhas pouco conhecidas do interior de São Paulo. Passamos o dia inteiro procurando por ele, até que o localizamos, já com coleirinha nova, na casa de um desconhecido que morava por perto. Ele, é claro, foi devolvido, e a criança que já havia lhe dado uma coleira, entristeceu.

Sempre que vinha à chácara enfiava-se em carniças e voltava com um fedor insuportável. Eu não queria dar banho nele, e sobrava para minha mãe a árdua missão. Lembro-me que ela o esfregava com força, jogando bastante água fria em seu dorso e o chamando dos piores nomes possíveis. Ele aparentava nem ligar.

Era um cachorro de pouco latido, mas notei que ultimamente ele uivava bastante, como se imaginasse o fim que se aproximava. Em certa época tossia e chorava muito. Pensamos que o seu fim estava próximo, pois que uma veterinária plantonista de um centro veterinário qualquer disse que estava com uma doença incurável que o mataria dentro em breve. Ele não morreu como o esperado, pelo contrário, ficou muito mais saudável. Até hoje eu não sei ao certo o que aconteceu. Prefiro acreditar que a veterinária, inexperiente, errou no diagnóstico.

Nesta última viagem, pediram para que eu não o levasse. Diziam que ele era muito fedorento e chato, bem como não conseguia ficar quieto. Não atendi aos apelos e o levei eu meu carro. Sabia que o seu maior prazer era este. Como sempre, ele não se comportou e fui muito repreendido por isso. Eu brecava o carro com força para vê-lo cair como um bobo do banco do carro. Todos ríamos de seu tombo.

O dia se passou e ele não largou da cachorra Branca e, lá pelas tantas horas da tarde, sumiu sem deixar rastros. Achamos que estava tudo bem, pois era comum ele sair, e fomos jantar na cidade como de costume. A noite se passou e ele não voltou. É certo que não expressei isso, mais comecei a ficar preocupado.

No dia seguinte todos acordaram e se perguntaram mutuamente a respeito do paradeiro do cachorro. Ninguém o tinha visto. Eu preferi acreditar que ele estava ocupado com alguma cachorra, mas minha mãe insinuou que ele podia ter sido atacado por algum cachorro grande e morrido.

Eu não quis acreditar nesta hipótese, mas minha mãe, sozinha, passou a procurá-lo pela estrada. Poucos minutos depois voltou, desesperada e chorando, queria que eu a acompanhasse para confirmar que o cachorro morto que encontrara a beira da estrada era de fato o meu cachorrinho. Rejeitei a idéia, mas após alguns minutos, decidi ir até lá. Infelizmente, era ele. Estava bem machucado, já um pouco comido por urubus. Sua orelhinha cortada semanas antes pelo pretinho Dudu ainda estava lá. Não chorei, mas senti que uma pequena parte mim estava lá, apodrecendo na beira da estrada. Com auxílio de minha prestativa companheira, fizemos uma pequena cerimônia a ele. Jogamos algumas flores da chácara que ele tanto gostava e o cobrimos com o pano que costumava o cobrir à noite. Oramos.

Ele já estava bem velho, logo a morte viria lhe visitar, mas eu não queria que fosse desta forma, queria poder ao menos me despedir dele, afagar-lhe a cabeça, chamá-lo de vagabundo como de costume. Ao menos posso acreditar que ele morreu feliz, louco atrás da cachorra Branca.

Somente agora, passadas algumas horas da confirmação de sua morte, sinto sua falta. Lembrei de tudo que passamos juntos, das repreensões e dos poucos carinhos que lhe dei. De fato ele vai fazer falta lá em casa. Gostaria poder dar mais carinho e atenção a ele, não deixar faltar comida em seu potinho vermelho. Não agüentei e fui visitá-lo novamente à beira da estrada. Já era bem tarde e o seu corpinho ainda estava lá, coberto com panos e pedras. Despedi-me mais uma vez, pedindo desculpa por todas as minhas faltas.

Ralf, obrigado por tudo. Descanse em paz. Nunca nos esqueceremos de você.